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Made in Brazil?

por Fábio Carvalho | agosto/2006
artigo originalmente publicado na revista Retrô

Existe um vício cultural entre nós que infelizmente parece nunca mudar: a mania (desejo?) do brasileiro em viver em eterno estado de “colonizado”, supervalorizando o que vem de fora, e julgando o produto local como inferior, mesmo quando evidentemente este não é o caso. Por aqui, qualquer coisa que seja identificada como “importada”, de imediato ganha uma “aura” de superioridade. E por que será que as pessoas parecem ter verdadeira vergonha, e às vezes até horror, aos produtos “Made in Brazil”?

Alguns meses atrás, em uma loja de antiguidades de São Paulo, eu estava sendo atendido por uma senhora muito amável e elegante, que atua no ramo há muito tempo. Num dado momento, notei um belíssimo jogo de chá da Porcelana Real, com marca de fabricação da década de 1960. Foi quando, para meu espanto, eu a ouvi contar que as peças da Real, como aquela que eu estava vendo (que para ela era dos anos 1940, já havia aí um engano), “passavam apenas pela primeira queima (biscuit) na fábrica, eram decoradas com os decalques, e seguiam de navio para a Alemanha, para sofrer glasura (vitrificação) e douração”, pois “o Brasil não possuía forno de alta temperatura adequado para a produção de porcelana fina até depois da Segunda Guerra Mundial”. Ou seja, até mesmo no caso de produtos genuinamente nacionais, é preciso de alguma forma agregar um “selo de valor estrangeiro”, pois se for apenas brasileiro, não é bom suficiente.

jogo de chá e bolo | Porcelana Real | Mauá - SP | anos 1960
porcelana | decoração com decalques, verniz verde e ouro | coleção Fábio Carvalho

Acontece que o Brasil possui fornos para queima e vitrificação de porcelana em escala industrial pelo menos desde a década de 1920, e em menor escala já na década de 1900, pois segundo Edilno Brancante, em seu livro “O Brasil e a Cerâmica Antiga”, de 1981, há registros de louça de mesa de porcelana fabricada pela Cerâmica Nacional, de Caeté (MG), entre os anos de 1903 e 1921, que abastecia o mercado de Minas Gerais. Esta fábrica foi fundada por João Pinheiro da Silva em 13/07/1893.

E já no final do século XVIII, entre 1790 e 1797, houve no Rio de Janeiro a fabricação de jogos de porcelana dura e camafeus de biscuit em estilo Wedgwood, por João Manso Pereira, havendo inclusive registro de suas marcas de 1793 usadas no Brasil e em Lisboa no “Guide de l’Amateur de Porcelaines et de Fayences”, de E. Zimmerman, já na 13ª edição em 1910.

camafeus de biscuit em estilo Wedgwood | João Manso Pereira
Rio de Janeiro - RJ porcelana | circa 1797 | coleção Banco do Brasil
fonte: O Brasil e a Cerâmica Antiga, E. F. Brancante. 1981, Cia Lithographica Ypiranga, SP

Todo o processo produtivo da Porcelana Real era realizado no Brasil, desde a extração e preparo das matérias primas, moldagem das peças, até a decoração, douração e vitrificação. Seus produtos eram de altíssima qualidade, e além de abastecer o mercado brasileiro, exportava para a Dinamarca, Noruega, Finlândia, Venezuela e África do Sul, e fornecia a louça oficial das Embaixadas do Brasil, da Disneylândia, da Prefeitura de Nova Iorque e da Marinha Norte-Americana, segundo o artigo “Memórias da Cidade”, de W. Puntschart, em publicação de 2004 do Centro de Referência da Memória e História de Mauá.

Constantemente eu vejo em feiras, lojas, e sites de leilão peças de fabricação nacional ganharem “cidadania” estrangeira. Acredito que a principal razão destes erros seja mesmo a desinformação (pois quase nunca há a preocupação em se pesquisar e estudar mais sobre o que se está lidando) e distração, pois na maioria das vezes a dica da nacionalidade está na própria marca gravada na peça. Por exemplo, a bandeja de bolo da foto abaixo não é japonesa, como é comumente alegado, mas sim da Porcellana Mauá, de Mauá, SP, com decoração executada por terceiros, aqui mesmo no Brasil.

bandeja de bolo | Porcellana Mauá | Mauá - SP | déc. 1960
porcelana | decoração executada por terceiros, com decalque, aerógrafo e detalhes em ouro

O pior é quando mesmo depois de avisada que uma determinada peça não é estrangeira, mas sim brasileira, a pessoa nada faz a respeito, e continua a vendê-la como importada. Aí já saiu do terreno da desinformação ou distração, para o da pura má fé. E infelizmente, a desinformação é ainda maior entre os compradores, que se deixam enganar facilmente.

Vejamos agora alguns dos erros mais comuns de “troca de nacionalidade” de marcas genuinamente brasileiras:

Adelinas - Portugal
Ars Bohemia - Boêmia (Polônia e República Checa)
Germer – Portugal
Luiz Salvador – Portugal
Cerâmica Matarazzo (marca padrão) – Inglaterra e Alemanha. A Cerâmica Matarazzo teve, além de suas marcas tradicionais, ao menos seis marcas fantasia, que parecem ter sido usadas para linhas diferenciadas de decoração: Dresden– Alemanha; London – Inglaterra; Mod. Cambridge – Inglaterra; Mod. Kanton – Inglaterra; Mod. Norfolk – Inglaterra; Mod. Oxford – Inglaterra;
Monte Alegre – Portugal
Nadir – Inglaterra, Holanda
Cerâmica Mauá – Inglaterra (jogo de toalete)
Porcelana Mauá (peças decoradas com motivos orientais por empresa decoradora) – Japão
Oxford  – Inglaterra
Pátria (DP e PA) – Alemanha
Rosicler – Portugal
Saler – Inglaterra, França e Portugal
Santo Eugênio – Inglaterra
Schmidt – Inglaterra
Cerâmica Tasca – Itália, Portugal
Vieira de Castro – Portugal
Weiss – Alemanha
Zappi – Portugal, Inglaterra e Itália

algumas das marcas mais "transformadas" em estrangeiras pelos comerciantes.

Como podemos ver na foto, não é possível que se trate apenas de falta de informação, pressa, desatenção ou desinteresse. A identificação de origem das peças (IND. BRAS.; S.PAULO; RIO; MADE IN BRAZIL; BRASIL; SÃO CAETANO) é muito nítida. Certamente o que acontece em muitos casos é puro oportunismo e má fé.

O pior é quando mesmo depois de avisada que uma determinada peça não é estrangeira, mas sim brasileira, a pessoa nada faz a respeito, e continua a vendê-la como importada. Aí já saiu do terreno da desinformação ou distração, para o da pura má fé. E infelizmente, a desinformação é ainda maior entre os compradores, que se deixam enganar facilmente.

Nada tenho contra a valorização da louça importada quando é justa, mas o que não posso aceitar quieto é a desvalorização das peças aqui fabricadas, ou pior ainda, quando a fazem passar por estrangeira, apenas para custar mais caro, pois como ouvi por estes dias “ah... mas se for nacional, aí desvaloriza o preço, né?”, ou para ser mais fácil de vender, uma vez que a louça importada tem maior procura entre os colecionadores.

Há muita louça de alta qualidade produzida em nosso país (em especial os produtos das décadas de 1940, 1950 e início de 1960), na minha opinião, superiores que muita louça estrangeira, por exemplo, inglesa, um dos maiores motivos de “frisson” do mercado de louça antiga. E diferente do Brasil, que produziu e ainda produz porcelana autêntica em enormes quantidades, a louça da Inglaterra quase nunca era de porcelana dura e autêntica,  mas sim de “meia-porcelana”, de algum dos vários tipos de faiança.
Jogo de café DP (Pátria) | Decoração sobre porcelana Real dos anos 1960.
O uso intenso de douração e cenas românticas faz com que alguns julguem se tratar de louça alemã

Arrisco pensar que muito deste comportamento disseminado entre nós é uma antiga herança cultural portuguesa (mas que é responsabilidade nossa não a ter ainda superado), os quais promoveram um grande intercâmbio cultural trans-nacional entre as regiões conquistadas. Um dos melhores exemplos é a Capela de N. S. do Ó em Sabará, MG, construída entre 1717 e 1720, em estilo barroco, mas que teve grande influência oriental. O altar-mor tem motivos chineses, pagodes e mandarins em ouro e azul, e os anjos possuem feições chinesas, um verdadeiro “remix” cultural!

Os navegadores portugueses trouxeram muitas novidades para sua pátria, que logo se tornaram preciosidades cobiçadas. Possuir artigos importados era a forma mais rápida de fazer parte de uma elite. Embora tenham sido durante um período uma das mais poderosas nações do mundo, Portugal parecia dar mais atenção aos valores estrangeiros, do que aos nacionais. Ostentar “estrangeirismos” era uma forma de se sentir e se afirmar “melhor” que os outros. E parece que nós brasileiros, ainda nos dias atuais, continuamos pensando assim.

Mais alguns exemplos de peças de marcas brasileiras que já se viu anunciadas como estrangeiras.

Some-se a isto o fato inédito do nosso país ter sido uma colônia que abrigou a corte e a nobreza do colonizador em suas terras. E com a corte, vieram não só os hábitos e manias europeus, mas também a saudade e a nostalgia da Europa, do lar que ficou longe. Com exceções, naturalmente, me parece que para o nobre português estar no Brasil, na colônia, era um motivo de eterna vergonha e humilhação.

Esta “saudade” da Europa, do centro, a mania de dar mais valor ao que vem de longe, a vergonha de ser brasileiro ou viver no Brasil, se achando sempre insuficiente, carente e desesperado por agregar valores estrangeiros ao corpo, às casas, ao discurso, até mesmo ao idioma, permaneceu entre nós.
Será que para sempre só iremos vestir a camisa verde e amarela e ficar histéricos gritando “BRASIL! BRASIL!” de quatro em quatro anos? Espero que não.

4 comentários:

  1. Ótimo texto Fábio!
    Concordo plenamemte com você!
    O mesmo acontece com "carnival glass", muitas vezes eu encontro peças brasileiras sendo vendidas como se fossem estrangeiras.
    E alguns vendedores, mesmo avisados, agem de forma ignorante colocando as informações que eu passo em dúvida.
    E sabe o que é o mais engraçado?
    O carnival glass produzido no Brasil é altamente prestigiado e valorizado no exterior.
    Para você ter idéia, um paliteiro, que normalmente é vendido por R$ 150,00 aui no Brasil, foi vendido em um leilão americano por US$ 200,00!
    Aproveitando a oportunidade, eu preciso perguntar se você tem alguma informação sobre a fábrica de louças Esberard.
    Antes de ser fábrica de vidros, a Esberard produziu peças de louça.
    O fundador da fábrica, Francisco Esberard, antes de vir para u Brasil trabalhava em fábrica de louças na França, se não me engano, a fábrica era do pai dele, e ele começou seus negócios no Brasil produzindo louças.
    Seria interessante se descobríssemos alguma informação sobre essa época.
    Grande abraço!

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    Respostas
    1. Obrigado!
      Infelizmente temos essa mania, que parece difícil de combater.
      Não tenho quase nada sobre a Esberard, infelizmente, apenas alguns anúncios no Almanak Laemmert, não sei se muito mais do que isso. A maior parte apenas sobre vidro, muito pouco sobre louça cerâmica.
      abraços!

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    2. aqui há duas coisas sobre louça cerâmica e fábrica Esberard:
      https://porcelanabrasil.blogspot.com/2011/01/primordios.html

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  2. Excelente reportagem!! Mudança de conceito.

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