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Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha

A Fábrica de Faianças nasceu do sonho de Rafael, acalentado pelo amigo de longa data, Ramalho Ortigão, e pela irmã Maria Augusta. O terreno (80.000 m) foi comprado por dois contos de reis e nele existiam 2 nascentes de água e 2 barreiros que serviriam de matéria prima ao fabrico de tijolos, telhas e louça artística. A escritura da fábrica, sociedade anónima de responsabilidade limitada, foi assinada a 30 de Junho de 1884 e Rafael entregou-se de corpo e alma ao plano arquitectónico das instalações. O resultado foi um pavilhão de dois andares com dois corpos laterais de pavimentos térreos, destinados a aulas e depósito de louça cercado dum parque ajardinado e arborizado, e um grande edíficio de um só pavilhão onde estavam instaladas máquinas e oficinas para além de três fornos. Para além de um grande pavilhão para venda e armazenamento dos produtos acabados.




Tinha como objectivo «explorar a indústria cerâmica no ramo especial das faianças», e propunha-se lançar no mercado, além de produtos de cerâmica ornamental e de revestimento e louça do tipo que se cultivava nas Caldas «objectos da mais fina faiança estampados com gravuras originais para usos ordinários, e louça ordinária para os usos das classes menos abastadas».


Rafael Bordalo Pinheiro no seu atelier da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, modelando o busto de Eça de Queirós. Entre outras peças, pode-se ver ainda o busto de seu pai, Manuel Maria Bordalo Pinheiro, e várias figuras da "Paixão de Cristo". "Parodia: Comedia Portugueza", 3º Ano, nº 107, Lisboa, 10.2.1905.


Em 1885, Ramalho Ortigão fazia a seguinte descrição da fábrica:

"Uma máquina a vapor de 25 cavalos de força com caldeira tubular de Danayer, reparte o movimento em trabalho contínuo por todas as secções desta olaria modelo. O barro principia por entrar no pilão; passa consecutivamente aos cruos; percorre os tanques, em que uma máquina eléctrica de Fauce de Limoges, depura a massa, extraindo-lhe pelo imã todos os resíduos metálicos; é novamente batido, amassado mecanicamente, reduzido à mais perfeita plasticidade; e acaba por sair às talhadas, subdividido em pães, para ser trabalhado na roda ou no torno. Os tornos e as rodas são igualmente movidos a vapor, correspondendo uma correia de transmissão a cada grupo de oleiros. Mesas circulares, tendo no oco do centro o lugar do monitor ou contramestre, são destinadas aos escultores, aos louceiros formistas e aos pintores vidreiros. As prensas de estampagem ocupam uma casa especial devidamente aquecidas a vapor. A fábrica tem ainda 2 moinhos para vidro, 4 moinhos para tintas, uma galga, 7 fornos para tijolo e telha, 3 fornos para louça artística, dois grandes e magníficos fornos de Minton para a louça de pó de pedra, 1 forno de calcinação e uma mufla."



Avelino Bello - Busto de Rafael Bordalo Pinheiro
terracota


A produção da fábrica engloba azulejaria, peças decorativas e utilitárias, onde a Arte Nova se manifesta singularmente, e uma galeria de personagens da sociedade portuguesa características do final do séc. XIX. Seguiram-se diversas exposições nas salas do Comércio de Portugal (1886), no Ateneu Comercial do Porto e na Exposição Industrial de Lisboa (1888), na Exposição Universal de Paris (1889/1890), Antuérpia e Espanha (1895) e Estados Unidos da América (1905).




Azulejos e materiais de construção


Azulejos de padrão "nenúfar e rã"
Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha - Museu Rafael Bordalo Pinheiro - Divisão de Museus - CML


Bordalo principia a sua produção em Setembro de 1884 aplicando-o com grande sucesso em grandes superfícies como fachadas e interiores de residências. A durabilidade e impermeabilização das superfícies, características particulares do azulejo, aliadas a efeitos visuais resultantes da imitação de materiais através do azulejo de relevo, deram origem a composições livres de rara beleza. Numa primeira fase mostrou preferência pelos azulejos de padrão, inspirados em motivos da azulejaria hispano-árabe, modalidade que nunca abandonou apesar das novas experiências com nenúfares, borboletas, gafanhotos e gatos, claramente influenciadas pela Arte Nova. A renovação do saber artesanal introduzida por Bordalo abriu as portas do mercado internacional ao azulejo português.

Além do azulejo artístico, a Fábrica de Faianças fabricou o azulejo comum e produziu tijolos (moldes em madeira reforçados a ferro) e telhas vidradas, revestidas de esmaltes verdes e cor de mel. Começou por fabricar tijolos e telhas para a edificação da própria fábrica e em Abril de 1885 concebe uma telha de menor peso e maior impermeabilidade com determinados apêndices para melhor segurança, em concorrência directa com a telha de Marselha. Foram construídos sete fornos para o cozimento deste material, na sua maior parte em barro vermelho.



Cerâmica Artística:

·1ª Fase (1885-1889)

É uma fase profundamente naturalista onde a magia do poder criativo de Bordalo se conjuga com a tradição ceramista caldense, explorando o cómico, em verdadeiras obras de arte e de humor. A exploração da tendência da cerâmica caldense para o grotesco, em peças de crítica social, e a utilização de modelos de olaria tradicionais - bilha, canjirão, cântaro, moringue e pichel - , decorados com motivos inspirados na fauna e flora locais, são as grandes linhas de força deste período.

Graças a experiências anteriores, e com mestres de oficina de reconhecida arte e competência, inclusivé técnicos recrutados no estrangeiro (C. Von Bonhorst, K. Hollof e Emille Possoz), não foi difícil a Bordalo levar este sector a fazer maravilhas. Este sector fabril compunha-se de 3 fornos para cozimento da faiança artística, um forno para calcinação do chumbo, moinhos para vidros e tintas, muflas de ensaios, bancadas e mesas de trabalho.


Ação da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha - Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro


Apesar das constantes encomendas e dos elogios rasgados da imprensa, a Fábrica em 1886 já se encontrava a braços com uma grave crise financeira e sobrevivia numa situação de permanente falência latente. Um problema temporariamente resolvido pelo Ministro das Obras Públicas que, numa visita às instalações da Fábrica, promete um subsídio anual em troca do ensino profissional da especialidade a 150 alunos na Escola Industrial D. Leonor das Caldas da Rainha - primeiro Curso de Formação Profissional em Portugal. A articulação da indústria com o ensino é um claro indício da influência do movimento Arts and Crafts.

·2ª Fase (1889-1899)

Depois de uma grave crise financeira que levou os accionistas a abandonarem a Companhia, Bordalo inicia uma nova etapa caracterizada pela realização de peças ousadas, fruto da sua imaginação prodigiosa e de um desafio pessoal que o levam a ultrapassar os limites dos razoável pelas suas proporções descomunais. São deste período a Talha Manuelina(1892) com os seus 2,33 metros de altura, o Perfumador Árabe (1896), obra-prima em filigrana de barro, e a Jarra Beethoven (1895-98) com 2,30m. As duas primeiras podem ser admiradas no Museu Rafael Bordalo Pinheiro de Lisboa, a terceira só no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro, embora se conheça uma cópia-miniatura na Casa-Museu dos Patudos em Alpiarça, onde se podem admirar cerca de 20 peças da autoria de Bordalo Pinheiro, para além de uma requintada colecção de mobiliário, porcelanas, pinturas e tapeçarias reunidas por José Relvas (1858-1929). Pratos decorativos e de suspensão, vasos, jarras e serviços de chá, são também comuns nesta fase.

Nesta fase, aliás paralela à publicação da 2ª série d'O António Maria, aumenta a sua galeria de personagens de movimento e reproduz em terracota e cerâmica desenhos publicados nesse álbum de caricaturas, como por exemplo, o grupo escultórico Prometeu Agrilhoado, em que a figura de Prometeu simboliza Portugal a ser desventrado/espoliado das suas colónias pela Águia que representa a Inglaterra, e as caixas, escarradores e penicos enformados com a cabeça de John Bull, numa reacção óbvia ao Ultimatum Inglês. É excepcionalmente eficaz e irónico o modo como utiliza a ambiguidade entre o código funcional e simbólico dos objectos.



Jarra Beethoven
Museu Nacional de Belas-Artes do Rio de Janeiro

De inspiração rocaille e linguagem simbólica esta peça de concepção e dimensões arrojadas numa só peça de barro vidrado, foi encomendada por José Relvas, violinista amador e apaixonado de Beethoven, para a sua Casa dos Patudos em Alpiarça. O entusiasmo do artista traduziu-se numa peça fantasiosa de 2,30 metros de altura, effectivamente é a obra mais completa que tenho feito. Se Deus ate ao fim, posso apresental'a como objecto raro, pela difficuldade de execução (30 de Agosto de 1895). Demasiadamente grande para o local de destino José Relvas a encomendou um exemplar de menores dimensões, finalizado em Abril de 1903.

Senhor dos Patudos (1 de Dezembro de 1895):

Infelizmente vejo que é collocal-a por forma que tenha a indespensavel exposição de luz, sendo tão inssuficiente o espaço da sala (...). Tenho por isso que acceitar o offerecimento, que o meu bom Amigo tão amavelmente me tem repetido, da substituição d'esta jarra por uma outra peça sahida das suas mãos. Custa-me muito, muitissimo mesmo, deixar de possuir um trabalho, que é incontestavelmente uma das suas obras mais preciosas, mas vejo bem que collocada aqui, perde ella muito e desequilibra completamente a casa (...)

Esta peça monumental é um hino a Beethoven desde uma folha de partitura com as primeiras notas do Quarteto, opus 18, nº4, tocadas por 4 executantes empoleirados numa curva da jarra, o medalhão com o retrato do compositor guardado por uma grande águia, até à base com as palavras mágicas Melodia e Harmonia. De resto, todo o vaso está envolto em folhagens e figuras alusivas à música.

Não havendo em Portugal um comprador disposto a pagar 5 mil escudos pela fabulosa jarra, Rafael parte para o Brasil, em 1899, levando-a consigo na bagagem para uma exposição de faianças no Rio de Janeiro, acabando por ser sorteada em rifas. Uma vez que o número bafejado pela sorte não foi comprado, o ceramista ofereceu a jarra ao Rei D. Carlos.



Talha Manuelina
Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha
Museu Rafael Bordalo Pinheiro
Divisão de Museus - CML

Peça de linha nacionalista decorada com elementos inspirados na arquitectura e ornamentação gótica, combinados com cenas históricas alusivas aos descobrimentos portugueses, como as caravelas modeladas entre os medalhões do Infante D. Henrique e de Luís de Camões. Quatro leões deitados suportam a base decorada nas suas 4 faces com azulejos e nos ângulos da linha cimeira, com brasões das 5 quinas antigas do Reino. As asas são feitas de cabos atados e cordas sinuosas cobrem o bojo da talha, em forma de bilha. O gargalo desaparece sob um conjunto de nichos onde se vêem miniaturas de cenas religiosas ("Via Sacra"). Uma esfera armilar com a Cruz de Cristo fecha a composição.

Comprada em 1893 por D. Carlos, esteve muitos anos esquecida no Convento de Mafra, donde veio para o Museu Rafael Bordalo Pinheiro.



Perfumador Árabe
Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha
Museu Rafael Bordalo Pinheiro - Divisão de Museus - CML

Vaso com 92 cm de altura ornado de pequenos azulejos e envolto em delicado rendilhado inspirado nos estilos manuelino e Mudéjar, abrindo-se em dois lados diametralmente opostos onde se anicham 2 cenas teatrais da "Via Sacra" reproduzidas em escala reduzida a partir das intituladas Capelas do Buçaco. Jesus perante Herodes, de um lado, e perante Pilatos, no outro.



·3ª Fase (1899-1905)

Ao mesmo tempo que insiste na estatuária, depois da experiência algo falhada com as figuras para as Capelas do Buçaco, cria em faiança grupos escultóricos de grandes dimensões e recria em barro uma vasta galeria de figuras inspiradas no folclore nacional. A Alcoviteira, a Ama das Caldas, a Varina, o Janota e o Zé Povinho, são alguns dos personagens cheios de humor e sentido crítico.


Cerâmica utilitária ou louça comum
(sector do "Pó de Pedra")

Se, no domínio da cerâmica artística o êxito foi imediato, o fabrico de louça comum exigiu de Rafael um esforço redobrado para conseguir melhorar a qualidade do barro e elevar o nível técnico da faiança. Visitou as mais importantes fábricas da especialidade e importou a maquinaria mais moderna. Apesar dos inegáveis aperfeiçoamentos alcançados na qualidade do esmalte, a composição da pasta, devido à qualidade do próprio barro, nunca chegou a índices satisfatórios e Bordalo nunca se esmerou muito na sua decoração.

Seguiram-se diversas exposições nas salas do Comércio de Portugal (1886), no Ateneu Comercial do Porto e na Exposição Industrial de Lisboa (1888), na Exposição Universal de Paris (1889/1890), Antuérpia e Espanha (1895) e Estados Unidos da América (1905). Mas a grave crise financeira da fábrica levou à falência em 1907 e à venda em hasta pública por 7.600$00.




RAFAEL BORDALO PINHEIRO E A FÁBRICA DE FAIANÇAS DAS CALDAS DA RAINHA

João B. Serra*

A aventura de Rafael Bordalo Pinheiro no domínio da cerâmica principiou tarde, relativamente, quando o artista fizera já 38 anos, mas não se resumiu a um punhado de tentativas mais ou menos bem sucedidas. Pelo contrário. De 1884 até 1905 Rafael manter-se-ia não apenas ligado por um compromisso sentimental, mas efectivamente responsabilizado - e cada vez mais, se assim se pode dizer - pelos destinos da unidade de produção cerâmica criada, na primeira daquelas datas, com a designação de Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, na vila do mesmo nome.

Foram praticamente 20 anos de uma actividade constante, ao longo dos quais percorreu diversas modalidades de expressão, processos técnicos, formas de execução, conceitos formais e recursos tecnológicos próprios do barro. Rafael Bordalo Pinheiro foi um ceramista e não só um artista plástico que também se interessou pelo barro. Aliás, nunca é de mais sublinhar, o estatuto de ceramista foi, com a obra de Rafael, elevado a um plano nunca antes atingido em Portugal.

O projecto original e o seu modelo inspirador

É possível reconstituir com segurança o projecto original da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, cujos estatutos seriam aprovados em reunião dos seus principais promotores em Outubro de 1883. A empresa adoptaria o figurino das sociedades anónimas, com uma gestão separada da propriedade. A direcção foi entregue pelos accionistas fundadores a dois directores, Feliciano Bordalo Pinheiro (responsável pelos aspectos organizativos) e seu irmão Rafael (responsável pelos aspectos técnico-artísticos). O destaque ia desde logo para o lugar de director técnico, nomeado por um período de 20 anos e beneficiando de um vencimento superior.

De acordo com os referidos estatutos, a empresa tinha como finalidade explorar a indústria cerâmica no ramo especial das faianças, e propunha-se vir a lançar no mercado, além de produtos de cerâmica ornamental e de revestimento e louça do tipo que se manufacturava nas Caldas, objectos da mais fina faiança estampados com gravuras originais para usos ordinários e louça ordinária para os usos das classes menos abastadas. Efectivamente a unidade fabril era formada por três sectores produtivos: materiais de construção, da louça decorativa, e louça comum. O primeiro entrou em funcionamento em meados de 1884, o segundo um ano depois e o terceiro em 1888.

A empresa anunciou a intenção de promover o ensino profissional da especialidade, o que de facto sucedeu, mediante um protocolo celebrado com o Governo em 1887. A qualificação da mão-de-obra n‹o podia deixar de constituir uma exigência estratégica para quem pretendia pôr em marcha uma profunda renovação da cerâmica industrial portuguesa. A fábrica dirigida pelos irmãos Bordalos estava implantada numa região de tradições artesanais, certamente úteis na montagem do sector da louça decorativa, mas pouco relevantes para a organização de um sector de louça de uso comum. Aqui, onde os processos de produção em larga escala eram dominantes e a divisão de trabalho própria da indústria pós-máquina a vapor imperava, tornava-se necessário formar novos operários.

A faiança utilitária de pasta branca gozava de um favor crescente entre as classes médias urbanas. Aparentemente, as duas únicas fábricas existentes em Portugal, a Fábrica de Sacavém e a de Fábrica de Alcântara, não satisfaziam o mercado, permitindo que os equivalentes estrangeiros (alemães, ingleses, franceses, espanhóis) adquirissem uma presença cada vez maior no mercado nacional. Em 1884 importaram-se 220,6 toneladas de artigos cerâmicos de faiança fina e porcelana e, em 1889, 281,5 toneladas.

O projecto da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha remete para esse enquadramento. É por ele que se explica também o apoio recebido do Governo e o estímulo que lhe foi dispensado por eminentes intelectuais (como Ramalho Ortigão, Joaquim de Vasconcelos, Fialho de Almeida). Propunha-se contribuir para fortalecer a economia nacional, colocando no mercado um produto competitivo, de boa qualidade, e decorado com motivos nacionais, desse modo inaugurando um novo ciclo das artes decorativas portuguesas.

Não é difícil reconhecer neste projecto a influência do "Arts and Crafts", movimento surgido em Inglaterra na década de 1860 e que se prolongou até finais do século. A articulação da indústria com o ensino das "artes e ofícios" - corporizada neste caso por um contrato celebrado pelo Governo com a fábrica, mediante o qual esta se comprometia a dispensar o ensino dos ofícios cerâmicos aos alunos que a Escola Industrial das Caldas da Rainha lhe apresentasse, a troco de um subsídio anual - e a criação de um lugar de director técnico, preenchido por um artista, são sinais claros dessa filiação. Ramalho Ortigão, um crítico de arte amigo de Rafael Bordalo Pinheiro, e que viria a reivindicar para si o patrocínio intelectual da iniciativa fabril, vinha defendendo com insistência a necessidade e oportunidade de renovação das artes aplicadas nacionais, a exemplo do que sucedia em Inglaterra onde "arquitectos, pintores e escultores se consagram, paciente e humildemente, a desenhar modelos para todas as indústrias". No seu entender, "Bordalo era pois o único homem, mas era-o de um modo completo, para intervir em Portugal numa indústria de arte, remanejando-a em concorrência com as indústrias similares do restos da Europa e fazendo ela um novo elemento de riqueza e glória nacional".

A crise. Proposta de um novo modelo

Em finais de 1884, os dois irmãos Bordalo Pinheiro iniciaram um périplo por França, Bélgica e Inglaterra, a fim de se inteirarem dos processos de fabrico e adquirirem maquinaria necessária. Efectivamente, ao longo dos dois anos seguintes, enquanto os sectores fabris dos materiais de construção e da louça decorativa trabalhavam já, com base numa tecnologia tradicional, a implantação do sector da faiança utilitária obrigava à importação de um técnico para acompanhar a construção de dois fornos de tipo Minton, uma máquina a vapor, uma caldeira multibular, muflas, uma máquina para a purificação de pastas.

Em meados de 1886 a fábrica de louça comum dos Bordalos já se devia encontrar, no essencial, montada e, se não iniciou nessa altura a laboração, é porque, segundo julgo, a empresa, entretanto, sofreu o seu primeiro e grave abalo financeiro. A subscrição pública de acções anteriormente realizada não teria tido grande sucesso. Muitos dos accionistas não cumpriram os seus compromissos. As subscrições efectuadas no Brasil a partir das diligências pessoais a que Feliciano Bordalo Pinheiro aí procedeu, entre Novembro de 1883 e Março de 1884, perderam significado com oscilações cambiais supervenientes. Só o apoio do Governo permitiu relançar o sector em 1887. A 2 de Agosto de 1888 era finalmente inaugurado. Mas uma segunda crise, cedo se abateu sobre ele, inviabilizando a sua continuidade.

A 22 de Janeiro de 1891, noticiava o semanário O Caldense que a Fábrica de Faianças tinha suspendido a laboração. Nos armazéns repletos de serviços de mesa por vender, várias dezenas de modelos, resultado da criatividade extraordinária de Rafael Bordalo Pinheiro.

Mau grado nesta crise confluírem factores emergentes da especificidade da situação quer da empresa quer da indústria cerâmica em Portugal, a conjuntura do país não deverá ser negligenciada. Importará recordar que em Maio de 1891 é declarada a bancarrota do Estado, depois de esgotados os equilíbrios financeiros baseados nas remessas de emigrantes (nomeadamente dos emigrantes para o Brasil) e nas exportações de produtos primários, principalmente o vinho. O agravamento do défice comercial e da dívida pública fazem dos anos finais da década de 1880 e primeiros da de 1890 um tempo dramático para a economia portuguesa.

O encerramento da fábrica em princípios de 1891 não atraiu qualquer movimento solidário da parte de potenciais investidores. É lógico que assim sucedesse. A queda de dividendos em sociedades anónimas dos diversos ramos industriais era já suficientemente preocupante para que alguém se dispuzesse a tentar salvar da falência uma que, desconfio, nunca distribuíra qualquer dividendo.

Alarmados, diversos intelectuais clamam por uma intervenção dos poderes públicos. Toma forma a proposta de um novo modelo institucional da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha. Formulou-a pela primeira vez Joaquim de Vasconcelos, em 1891, ao advogar o reconhecimento da Fábrica como Escola Nacional de Cerâmica. Vasconcelos colheu decerto inspiração na experiência francesa da Manufactura Nacional de Sévres, com o seu programa de estímulo à indústria nacional, através da formação e da promoção de um vocabulário decorativo. Charles Lepierre, um técnico francês que se radicou em Coimbra nos finais do século lembrava os objectivos enunciados em Sévres desde 1891 e que conviria adoptar em Portugal: fabricar porcelana dura e produtos cerámicos que oferecessem interesse de arte ou de ensino; estudar e vulgarizar os processos artísticos e químicos aplicados à arte e indústria cerâmicas; efectuar o ensino normal da cerâmica (Sévres formava artistas e operários e divulgava fórmulas e processos para desenvolver a produção nacional).

Não creio que tais propostas tenham encontrado interlocutores nos Governos portugueses da década de 90. A pressão financeira agiu com um factor de ensurdecimento do Estado. Mas o Banco de Portugal acedeu a não executar a dívida que a sociedade da Fábrica de Faianças contraíu.

A cerâmica decorativa da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha

A escolha das Caldas da Rainha para implantação da Fábrica de Faianças deveu-se, entre outros motivos, ao reconhecimento de que aí existia um saber, uma experiência e uma tradição nacional e internacionalmente reconhecidas na faiança decorativa, e com as quais o próprio Rafael se identificava.

A louça bordaliana é certo que transgrediu os cânones dessa expressão regional da arte popular do barro que lhe pré-existia nas Caldas. Mas rendeu-lhe homenagem, nela buscando inspiração, um sentido, reinterpretando-a. Naturalmente que essa renovação cedo se repercutiu na restante produção local, também ela adoptando e adaptando Bordalo, reinventando e reformulando essa herança, numa linhagem que chega até aos nossos dias.

A cerâmica produzida sob a direcção de Rafael Bordalo Pinheiro distribui-se por géneros tão diversos como materiais de construção, azulejo, louça utilitária, escultura, louça decorativa e artística. Foi este último que aqui privilegiámos, em atenção à natureza do certame que se efectua sob a égide do artesanato. A Fábrica de Faianças original encontrava-se, aliás, organizada em 3 sectores, com tecnologia e organização produtiva distintas (sector dos materiais de construção, sector da louça decorativa e sector da louça comum). Mas após uma grave crise financeira declarada em 1892, ela dirigiu a sua actividade basicamente para a área da cerâmica decorativa e artística, aquela que sem dúvida mais interessou e absorveu Rafael Bordalo Pinheiro.

Há um nexo evidente entre o desenho e a cerâmica de Rafael. A serôdia aproximação do artista ao barro acentuou essa relação que constitui, por outro lado, o sinal de uma nova técnica a invadir - e até em determinada medida e sentido a subverter - a cerâmica tradicional de raiz popular, onde o desenho está ausente. Mas convirá não nos deixarmos iludir e supôr que se trata de dependência quando estamos em face de integração. O desenho constitui um passo fundamental na criação, mas a peça cerâmica não é a mera tradução nas três dimensões do motivo previamente concebido em duas. A dezena de painéis que neste pavilhão se exibem julgo que põem em destaque não só aquilo que a modelação em barro, a cozedura, a pintura e o vidrado acrescentam ao desenho mas também aquilo que nele modificam. A obra de Rafael Bordalo é, igualmente nesse aspecto, exemplar.

Propomo-vos uma viagem - curta, praticamente introdutória - pelo universo bordaliano, através dos referidos painéis. Neles se observar, de acordo com a nossa proposta, os vários tons, mais leves ou carregados, do humor com que Rafael enfrentou a sociedade do seu tempo. E, em paralelo, se reconstituirá uma arqueologia da(s) cultura(s) - aqui subsumida na designação lata de costumes - tal como se revela em elementos que vão da indumentária ao porte físico, das feições ao gesto, dos referentes simbólicos de grupo aos objectos de uso quotidiano, com passagem por apontamentos do imaginário histórico e nacional.

O contraponto que cada painel proporciona entre desenho e cerâmica traz à luz a característica tipificadora desta última em Rafael Bordalo Pinheiro. O desenho surpreende pessoas e acontecimentos, faz a crónica, a cerâmica fixa sobretudo tipos, faz a representaçao da situação. O Rafael ceramista foi singularmente avaro, ao invés do Rafael desenhador, na figuração das personagens e intérpretes da cena a que assistiu e em que participou. Ele que a si próprio se retratou nas mais diversas circunstâncias, não modelou mais do que um retrato de corpo inteiro - e a uma escala quase miniatural - do Bordalo ceramista. Talvez como que pretendendo sublinhar, desta forma indirecta, a autonomia e a especificidade do seu trabalho com o barro.

* Investigador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.


fonte: http://www.citi.pt/cultura/artes_plasticas/caricatura/bordalo_pinheiro/fabrica.html

mais sobre Rafael Bordalo Pinheiro:
http://cvc.instituto-camoes.pt/figuras/rbpinheiro.html
http://www.fabordalopinheiro.pt/


Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro, Lda.

Localizada na orla do Parque termal de Caldas da Rainha, no prolongamento do centro histórico da cidade, Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro é hoje a mais antiga fábrica de cerâmica caldense em laboração. Foi fundada em 1908, recebendo técnicos e equipamentos de uma uindade fabril criada em 1884 e cujo principal inspirador foi o artista Rafael Bordalo Pinheiro.

Esta fábrica procura na sua produção respeitar as duas componentes principais da tradição de cerâmica caldense. Uma, muito antiga, e remontando provavelmente à segunda metade do século XVIII, é a que se traduz no enriquecimento da olaria popular com elementos decorativos da flora e da fauna regionais e a exploração dos vidros. Outra é a que corresponde ao movimento bordaliano no sentido de integrar critérios artísticos na produção de tipo industrial, fazendo coincidir nos objectos de cerâmica de uso quotidiano tanto a qualidade decorativa como a qualidade técnica.

Recriando e adaptando os elementos da sua própria história industrial e decorativa, a fábrica apresenta hoje novas linhas de produtos com elevada e crescente aceitação no mercado nacional e internacional. Cerca de 90% da produção destina-se ao estrangeiro, designadamente Estados Unidos, França, Inglaterra e Austrália.

Em termos de espaço físico, a fábrica reparte-se por diversos pavilhões, alguns de contrução recente. Conserva, no entanto, parte do edifício mais antigo, contruído na primeira década do século XX, onde funcionava serviços de apoio à administração e está instalado o Museu.

Organizado há poucos anos, na sequência da remodelação da estrutura da empresa, que representou um novo fôlego para a fábrica, este núcelo museológico é praticamente único no seu género em toda a região e dos raros no País. Alberga um espólio muito rico em utensílios da olaria tradicional, em exemplares de cerâmica artística e decorativa e até em materias cerâmicos de construção, a par de elementos manuscritos e outra documentação que ilustram diversas épocas da fábrica. Além da conservação deste património está em curso a recuperação e identificação de modelos antigos. A partir deste núcleo, a actual administração reanimou uma linha de produção regular, embora em pequena quantidade, de algumas réplicas de peças existentes no Museu.

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