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Porcelana brasileira, a saga de uma pesquisa

por Ethel Leon
para a revista Florense, no. 18
http://www.florense.com.br/


Alguém já disse que, no Brasil, não fossem os colecionadores particulares, seria impossível pesquisar muitos aspectos da vida cultural. O carioca Fábio Carvalho só reforça essa impressão. Há quatro anos, ele pesquisa, sozinho e por conta própria, a indústria brasileira de porcelana.

O resultado se transformou em site e em livro e dá conta de 321 fábricas de louças de mesa e decorativas, material para laboratório e louça sanitária. O trabalho permite que proprietários, museus, antiquários e colecionadores de louças brasileiras classifiquem seus objetos, entendam o que têm em mãos, valorizem as peças e, eventualmente, até ganhem dinheiro com elas.

A pesquisa não começou em uma universidade, nem em um museu. Em 2004, Fábio ganhou de seus pais o apartamento onde sempre moraram, no Rio de Janeiro. A residência foi doada com tudo que havia dentro, inclusive peças de louça do enxoval do casamento, de 1963. Fábio procurou objetos e móveis para decorar a casa e, ao comprar um grande prato de bolo em faiança da Cerâmica Matarazzo, foi “infectado”, como conta, “pelo vício do caulim”. Continuou a adquirir louças de porcelana, nacionais e estrangeiras.

Ao tentar informar-se sobre as peças, percebeu aquilo que tantos pesquisadores da nossa cultura já sabem: é mais fácil obter história, detalhes e análises de pratos e xícaras da francesa Sèvres, da alemã Meissen ou da inglesa Wedgwood do que saber quem fabricou um jogo de jantar nacional. Entre curioso e desapontado, Carvalho saiu a campo, desandando a pesquisar os museus de louças, os antiquários, colecionadores, as feiras de arte e quinquilharias.

Também decidiu consultar arquivos e bibliotecas. Uma das primeiras a que recorreu foi a do Instituto Nacional de Propriedade Industrial, responsável por editar a Revista de Propriedade Industrial. Lá ficou sabendo que o órgão não possui em seu acervo a coleção completa da publicação. Os números esgotados estão sendo microfilmados, mas os microfilmes não são emprestados a outras bibliotecas. “Trata-se de arquivo morto”, indigna-se o pesquisador.

As decepções não pararam por aí. A delegacia regional do INPI de São Paulo se desfez de todas as revistas que guardava... por falta de espaço. E, pior, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, que preserva todas as publicações do país, enviou seu arquivo do Diário Oficial para um anexo no antigo cais do porto do Rio. Lá, ainda não está aberta ao público. Carvalho precisava dos diários oficiais e das revistas do INPI para localizar os registros de marcas, fonte imprescindível para pesquisadores de diversos aspectos de nossa história industrial.

E levou muito tempo para levantar dados de seu trabalho documental. Ele relata: “A fonte de pesquisa mais densa sobre datação foram os mais de sete meses comendo ácaro e poeira em algumas bibliotecas, consultando a Revista de Propriedade Intelectual, onde eram publicados os registros de marcas, modelos e decorações. A pesquisa nos catálogos telefônicos do Rio de Janeiro foi muito importante para localizar e recuperar os períodos de atividade das fábricas cariocas”.

A datação de porcelanas, a partir das marcas de fabricantes gravadas nas peças, foi um minucioso esforço de arqueólogo. Carvalho reunia e organizava as informações que ia conseguindo sobre cada peça individual. “Aos poucos, consegui identificar os períodos aproximados de muitas marcas”, conta o pesquisador. “De algumas delas foi mais fácil, como a Porcelana Mauá, Schmidt, Real, pois produziram muitas peças comemorativas datadas, mas, de outras, foi um trabalho lento”.

Apesar de tantas dificuldades, sua pesquisa – que não contou com qualquer apoio, como bolsa ou financiamento – rendeu um feito e tanto. O livro, de 142 páginas, reproduz as marcas das indústrias, conta a história de muitas delas, lista diferentes formas e decorações de peças, apresenta uma linha do tempo, que – pasmem – começa em 1790, e ainda enumera 160 fábricas, das quais ele não conseguiu qualquer informação. O site tem mais de 400 páginas sobre a história das fábricas nacionais e mais de 5.900 fotos de marcas e peças de faiança e porcelana, além de uma extensa bibliografia sobre o assunto.

As instituições que o ajudaram foram o Centro de Documentação Coronel João Pedro de Godoy Moreira e o Museu Histórico e da Porcelana, ambos em Pedreira, São Paulo; a Fundação Pró-Memória e o Museu Histórico, de São Caetano, São Paulo; e o Museu Barão de Mauá, na cidade de Mauá, também em São Paulo. “Como todo museu brasileiro, estes lutam contra a falta de verbas, de funcionários qualificados e instalações adequadas. Mesmo assim, fazem um trabalho maravilhoso de conservação e acumulação de objetos, documentos e fotos”, reconhece o pesquisador.

Toda essa investigação foi feita à medida que Carvalho ampliava sua própria coleção, dedicada, a partir daí, à porcelana brasileira. Em sua casa, ele mantém mais de 1.500 peças, a mais antiga delas uma malga (tigela) da Fábrica Santa Catharina, da década de 1910.

Carvalho constatou que boa parte das fábricas pertenceu a italianos, alemães e portugueses que aqui continuaram o que faziam na Europa. Nesse sentido, segundo ele, não seria correto falar de “cópias” de modelos estrangeiros, mas de uma espécie de continuidade do ofício. Nossas fábricas fizeram jogos de café com pequenas leiteiras, ignorando nossos hábitos do café com leite; e se esmeraram em reproduzir motivos rupestres, flores e folhagens, filamentos neoclássicos que vemos em louças européias. Nada estranho, diz ele, “se lembrarmos que as manufaturas européias tanto imitaram as louças chinesas”.

Percorrer o livro e o site é um delicioso exercício de reconhecimento e de surpresas. Já na página 8 do livro, tomamos contato com a Fábrica de Louças Adelinas, do português Manoel de Barros Loureiro, fundada em 1929, em São Caetano do Sul, São Paulo. O nome da empresa resultou do gesto apaixonado de seu proprietário pela esposa num daqueles casamentos que prometia durar para todo sempre. Com técnicos contratados na Alemanha, na França e em Portugal e diretor técnico italiano, tornou-se uma das maiores fábricas de louças do Brasil, chegando a ter mais de 1.200 operários e produção anual de 18 milhões de peças, no final dos anos 1930. Pois não é que, em 1947, Manoel se separou de Adelina, num turbulento processo de divórcio e desentendimento entre os filhos sócios? A fábrica foi fechada e Loureiro criou a Manufatura Brasileira de Louças. Com sua morte, em 1951, a viúva Adelina assumiu os negócios e fechou o prédio da fábrica. Para piorar a situação, no ano seguinte, descobriu-se que a produção era desviada para armazéns particulares, e a empresa foi fechada judicialmente. Agora, sim, para sempre.

Mas também há histórias felizes, como a da família Mizuno, que chegou ao Brasil em 1953 e abriu a fábrica com seu nome em 1956. As instalações resumiam-se a um simples galpão industrial de eucalipto com paredes de barro. Os tornos foram montados com peças de ferro velho; os fornos, de lenha, construídos com tijolos de olaria. Nos anos 1970, os Mizuno começaram a fabricar louças para a comida japonesa e, seguramente, se beneficiaram com a popularização dos sushis e sashimis. A Porcelana Mizuno já está na terceira geração e continua produzindo com as técnicas japonesas.

As pequenas resenhas de algumas fábricas mostram as vicissitudes da atividade no Brasil. Veja-se o caso da empresa Colombo, do Paraná. Fundada pelo italiano Francisco Busato, importou máquinas e técnicos da Itália, conseguiu isenção de impostos por 15 anos e produziu louça fina, mas, apesar de receber medalha de ouro na Exposição Agrícola e Industrial de 1900, não conseguiu decolar como empresa. Um novo sócio fez vir um químico da Alemanha, além de técnicos e novas máquinas. Na mesma época, um grupo de pequenas cerâmicas decidiu registrou a marca Colombo e passou a vender louça inferior e mais barata. A Colombo teve de trocar de nome, virou São Zacarias, continuou ganhando prêmios, mas era preterida pelas louças estrangeiras. Só foi conhecer certa prosperidade durante a I Guerra Mundial, graças à dificuldade de importação, e quando fora arrendada pelo industrial Oto Brutski, do Rio Grande do Sul. Em 1926, a fábrica pegou fogo e foi fechada.

Em compensação, há a Oxford, fundada em 1953, a partir da compra da Cerâmica Santa Terezinha, que ficava no bairro de Oxford, em São Bento do Sul, Santa Catarina. Desde 1965, seus dirigentes começaram a apostar em produtos populares. Hoje, a empresa tem mais de mil empregados e produz quase 4 milhões de peças por mês, tendo contínuo lançamento de coleções, com motivos criados por designers brasileiros.

Muitas empresas fecharam, em diferentes períodos, por dificuldades financeiras. Não foi o caso da São João/Brennand, de Recife, fundada em 1947. Seu proprietário, Ricardo Brennand, amava o que fazia, colecionava porcelana chinesa e manteve a fábrica numa antiga usina de açúcar. Trouxe artesãos da manufatura portuguesa Vista Alegre, empregou mais de 400 funcionários, ex-agricultores e operários locais, e se esmerou na produção artesanal. A fábrica ia muito bem de finanças. Porém, com sua morte, em l968, os herdeiros decidiram fechá-la: acharam difícil administrar a empresa.

Uma história feliz é a da Schmidt, que passou por muitas dificuldades financeiras, especialmente a partir da abertura da economia realizada pelo governo Collor, em 1990. Sobreviveu depois de fechar duas marcas e de especializar suas unidades. Hoje, é a maior fábrica de porcelanas da América Latina e uma das maiores do mundo.

Já a Weiss, de São José dos Campos, não agüentou a pressão da concorrência estrangeira e acabou fechando em 1995, depois de 54 anos de existência. Segundo Carvalho, a empresa “nasceu da capacidade criativa de Inês Weiss, que havia aprendido técnicas de pintura na Fábrica Santo Eugênio, de sua família”. Desenvolveu pintura colorida e exuberante, que passou a ser vendida em São Paulo nos anos 1940. Em 1951, a Cerâmica Weiss já produzia 800 mil peças por mês. E, a partir dos anos 1960, instalou uma linha de produção industrial e passou a exportar. Esta é, provavelmente, uma das fábricas que os historiadores do design deverão ter grande interesse em pesquisar. Primeiro, porque Inês Weiss incorporou motivos próprios – flores, folhas e grafismos, com cores inusitadas – e também adaptou telas de pintores como Mondrian, Mirò e Picasso em suas peças. A Weiss também encomendou, nos anos 1960, algumas peças ao designer Livio Levi (e isso não está no livro de Fábio Carvalho, mas pode ser uma contribuição para o site), que desenhou formas de peças sem decoração, apenas brancas.

Outra fábrica que merece muita atenção é a paulista Santa Catharina, que existiu entre 1912 e 1927. Fundada por italianos, com maquinário alemão, teve produção diversificada, desde louças até velas de filtros, que forneceu ao Instituto Butantã. Nas peças que conhece, Carvalho identificou um tipo de pintura de flores, feita à mão livre, que parece grandes crisântemos. “Nessa produção, não encontro paralelo na louça européia, mas sim na decoração popular brasileira”, observa.

Carvalho quer continuar a pesquisa, ampliando as informações do site e lançando novos livros. Um de seus próximos passos será visitar os museus do Paraná. Ele não tem aquilo que se pode chamar de carreira retilínea. Formou-se em biologia marinha, fez pós-graduação em informática, depois incursionou pelas artes plásticas e pelo design visual e, agora, estuda música. Mas sua grande contribuição aos estudos brasileiros já está feita.


obs.: A matéria ficou muito boa, mas como sempre em matérias jornalísticas, há muita coisa "entre aspas", como se fosse uma afirmação minha, mas que eu não disse, ao menos não daquela forma, ou com aquelas palavras, ou ainda, com aquele sentido ou objetivo. Quem quiser ver a entrevista original, para comparar os resultados, basta clicar neste link. De toda forma, estou satisfeito com a matéria.

Um comentário:

  1. Artigo muito bom. E merecido, claro. Digo aqui, mais uma vez, da minha grande admiração pelo seu trabalho. Parabéns.

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